terça-feira, 27 de maio de 2014

"Se não tem abelha, não tem alimento”, diz o professor Lionel Segui Gonçalves da USP



Numa manhã de março em Hobart, capital do estado australiano da Tasmânia, o brasileiro Paulo de Souza se prepara para uma tarefa rotineira. Primeiro, sai para caçar abelhas que, uma vez capturadas, são colocadas numa geladeira até que suas temperaturas corporais baixem para 5 °C, quando entram em hibernação. Souza começa então a segunda etapa do trabalho: com um bisturi e uma pinça, raspa cuidadosamente os pelos dos insetos. As abelhas são depiladas para a instalação de sensores de 2,5 milímetros de largura e 5 miligramas de peso em suas costas (veja o passo a passo ao lado). O procedimento dura menos de cinco minutos, quando os bichinhos acordam. Enviadas para uma área de readaptação, elas demoram para se acostumar com o peso extra do chip — e daí estão prontas para voltar às colmeias. Souza não é colecionador de insetos e nem tem um hobby esquisito. Ele é engenheiro do CSIRO (órgão de desenvolvimento científico da Austrália) e está à frente de uma pesquisa que tenta responder a uma pergunta que está tirando o sono de cientistas: por que as abelhas estão morrendo numa velocidade duas vezes mais rápida do que alguns anos atrás? “Precisamos saber por que as operárias abandonam suas colmeias”, disse Souza. “De forma direta e indireta, isso causa a falência de fazendas e prejudica a produção de alimentos ao redor do mundo.”

Nascido no Espírito Santo e radicado na Austrália desde 2008, Souza aposta na tecnologia para solucionar o mistério da morte em massa das abelhas. Equipadas com chips de RFID (identificação de radiofrequência, na sigla em inglês), elas saem do laboratório para retomar a polinização, a produção de mel ou qualquer outra função na colmeia. O zum-zum-zum é monitorado por uma série de antenas que registram toda vez que uma delas passa por um determinado ponto. Ao todo, 5 mil abelhas carregarão o chip nas costas até o final do experimento. Essa informação é retransmitida para um centro de controle, onde cientistas criam um modelo tridimensional da movimentação das abelhas. A ideia por trás do estudo é verificar o quanto a exposição aos pesticidas afeta o comportamento de colônias. Para isso, duas das colmeias do centro de pesquisa de Hobart são expostas a pólen contaminado com agrotóxico. As outras duas não. Se Souza e sua equipe notarem uma alteração no comportamento das abelhas expostas ao pesticida, como a incapacidade de voltar para o ninho, atrasos e até a morte precoce, o produto passará a ser o principal suspeito de causar o Distúrbio de Colapso de Colônias, ou CCD na sigla em inglês.

O problema foi notado pela primeira vez em 1995 nos EUA e faz com que as operárias de um ninho não encontrem mais o caminho de casa, abandonando a rainha e os ovos e causando a destruição de suas colmeias. Estima-se que, nos últimos seis anos, o CCD tenha causado a morte de 35% das abelhas criadas em cativeiro dos EUA e da Europa — e a Academia Nacional de Ciência norte-americana sugere que o efeito nas colônias selvagens seja ainda pior. Quando as abelhas começaram a desaparecer, especialistas estimaram que elas estariam extintas até 2035. Com o agravamento da crise causada pelo CCD, isso deve acontecer muito antes. O pesticida pode ser o principal suspeito, mas outros fatores são apontados como possíveis causas desse fenômeno: estresse causado pelas mudanças climáticas, infestações de uma espécie de pulga, radiação de telefones celulares e plantações com sementes geneticamente modificadas. “As abelhas têm hábitos muito regulares e perceber alterações nessa rotina é muito simples”, diz Souza. “Se uma funcionária sai para coletar pólen e demora mais do que as outras para voltar para a colmeia, já sabemos que há algo errado.” As primeiras conclusões do estudo devem ser conhecidas em junho deste ano.

Mas por que ter tanto esforço para investigar esses bichinhos que insistem em se afogar na sua Coca-Cola? “É simples: se não tem abelha, não tem comida”, diz o professor Lionel Segui Gonçalves, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto. Ele lidera o movimento Bee ornottobe (um trocadilho com o bordão Tobeornottobe de Hamlet, personagem do escritor inglês William Shakespeare) e estima que esses insetos sejam responsáveis pela produção de 73% dos vegetais do mundo. Não entendeu a ligação? Basta lembrar das aulas de biologia: as abelhas são responsáveis por levar pólen de uma planta a outra, colaborando com a fecundação das flores que, por sua vez, geram novos frutos e sementes. Quando não há a polinização, a reprodução fica comprometida. A planta não consegue gerar frutos e brotos ou a variação genética da espécie é prejudicada, já que se torna dependente do próprio pólen para se proliferar. “Ela fica fadada a reproduzir clones de si mesmo, que seriam mais suscetíveis às doenças”, afirma David de Jong, outro professor da USP de Ribeirão Preto, especialista em patologia apícola.

FOTO: CLAUS LEHMANN


ALIMENTOS MAIS CAROS
A amendoeira é um bom exemplo de como o CCD pode afetar as plantações. A árvore depende única e exclusivamente dos insetos para se reproduzir, e 80% da produção mundial da fruta seca está localizada na Califórnia, estado norte-americano muito afetado pelo fenômeno. Para tentar manter a safra, agricultores locais foram obrigados a alugar 1,4 milhão de colmeias durante a época de polinização dos últimos anos. A demanda inflacionou o aluguel de colônias, cujo preço aumentou mais de seis vezes e bateu em US$ 250. Hoje, é mais caro alugar abelhas do que pagar por fertilizante, água ou mão de obra. O resultado? Queda na produção e aumento no preço da amêndoa — o que deu início a um efeito cascata que atingiu em cheio outras áreas da indústria alimentícia. Por ser muito nutritiva, a casca da amêndoa é usada para alimentar o gado, o que encareceu a ração bovina. Quando vacas não se alimentam de forma apropriada, elas produzem pouco leite, expandindo as consequências do CCD para as fabricantes de laticínios. Isso sem contar as outras espécies de plantas que seriam afetadas, em maior ou menor escala, pela falta de abelhas. O que aconteceria caso elas sumissem para sempre? Pesquisa realizada pela ONG americana Xerxes Society em parceria com a rede WholeFoods estima que as prateleiras de supermercados perderiam 52% do total dos seus produtos, como banana, maçã, repolho e couve.

Os efeitos devastadores do CCD são mais evidentes em países do hemisfério Norte, mas já há suspeitas de que a síndrome esteja se repetindo em outros lugares, inclusive no Brasil. “Em Santa Catarina houve uma taxa maior de mortalidade em 2011, quando um terço das colmeias do estado morreu em apenas seis meses”, conta David de Jong. O problema prejudicou não apenas a produção de mel, que ficou abaixo do esperado. A colheita de maçã na região também sentiu os efeitos, já que pomares ficaram sem polinização. A versão brasileira da síndrome estaria relacionada ao uso de neocotinoides, um tipo de agrotóxico proibido na União Europeia. Aqui, eles tiveram o uso restringido em 2012, justamente pela suspeita de que a exposição a esses químicos poderia alterar o comportamento das abelhas. Mas após uma reação de associações de agricultores e do Ministério da Agricultura, que alegavam queda na produtividade, o governo voltou atrás. “Há um limite para a utilização dos pesticidas, mas muita gente usa bem mais do que deveria por não ter informações”, diz Osmar Malaspina, doutor em ciências biológicas do Instituto de Biociências da Unesp de Rio Claro. “O piloto do avião não sabe qual é o efeito daquele produto nas abelhas e nem o papel delas na polinização.”


A HISTÓRIA SE REPETE?
Apesar da preocupação dos apicultores, muita gente acredita que esses dados ainda sejam muito pontuais para provar que o CCD já esteja causando estragos em território nacional. Um exemplo são as perdas de até 70% das colônias do Nordeste nos últimos meses, que estariam ligadas à seca severa na região. “Muitas coisas podem afetar as populações de abelhas, ainda não conseguimos achar uma lógica”, afirma Malaspina. “Em Santa Catarina isso pode ter sido causado por um surto, algum problema de manejo.” A coleta de dados oficiais está começando agora — e um parecer mais conclusivo só será apresentado daqui a dois anos. Para ajudar, o movimento Bee ornottobe lançou o Bee Alert, aplicativo voltado aos criadores de abelhas e pesquisadores que pode ser acessado em qualquer plataforma pelo site semabelhasemalimento.com.br/beealert. Com o programa é possível marcar onde colmeias foram afetadas, a intensidade do fenômeno e a sua provável causa. Além disso, o movimento pede para que todos colaborem com a proliferação dos insetos — seja plantando mais flores ou criando a sua própria colmeia em casa (aprenda a montar a sua no quadro Como Faz). “Precisamos usar pesticidas não-tóxicos para as abelhas e priorizar o controle biológico de pragas”, diz Gonçalves, da USP de Ribeirão Preto. “E todo mundo precisa saber da importância das abelhas para a natureza e para a nossa alimentação.”

Dados obtidos recentemente por uma pesquisa da Universidade de New Hampshire, nos EUA, podem mudar os rumos dessa discussão. De acordo com o estudo, as abelhas passaram por um grande declínio populacional há 65 milhões de anos, mesma época da extinção dos dinossauros. Como há poucos fósseis dos insetos, os pesquisadores analisaram a sequência genética de 230 espécies de abelhas atuais e, em seus DNAs, encontraram pistas que indicariam a extinção. “Quatro grandes grupos de abelhas apresentavam os sinais e eles coincidiam com o fim do período Cretáceo, quando os dinossauros desapareceram e diminuiu também o número de plantas com flores”, conta a bióloga Sandra Rehan, uma das autoras do estudo. Mas quem sumiu primeiro, as plantas ou as abelhas? Ainda não se sabe. Os fatores ambientais eram outros e os pesquisadores consideram o impacto de um meteoro, que teria comprometido todo o sistema. Mas o passado das abelhas indica como o equilíbrio da espécie é frágil e como ele afeta o resto do ecossistema. “Ao compreendermos melhor o que aconteceu no passado das abelhas, podemos enfrentar a crise de polinizadores com mais conhecimento no presente”, afirma Sandra.
 (Foto: Claus Lehmann)
(FOTO: CLAUS LEHMANN)
Depois de capturadas em Hobart, na Tasmânia, as abelhas são colocadas em potes dentro de uma geladeira até que suas temperaturas corporais cheguem a 5 °C, quando entram em hibernação
 (Foto: Claus Lehmann)
(FOTO: CLAUS LEHMANN)
Com a ajuda de uma pinça e de um bisturi, o pesquisador brasileiro raspa cuidadosamente o pelo das costas das abelhas para a instalação de um sensor. O processo demora menos de cinco minutos
 (Foto: Claus Lehmann)
(FOTO: CLAUS LEHMANN)
chip de RFID (identificador de radiofrequência, na sigla em inglês) tem 2,5 milímetros de largura, 5 miligramas de peso, ou 5,5% da massa corpórea da abelha. Ele é instalado como uma espécie de mochila hi-tech. Quando as abelhas saem da hibernação, elas são colocadas numa espécie de área de recuperação. É preciso dar um tempo para que elas se adaptem a voar com o peso extra do sensor instalado nas costas
 (Foto: Claus Lehmann)
(FOTO: CLAUS LEHMANN)

Adaptadas, as abelhas são liberadas para realizar suas tarefas na colmeia. A movimentação dos insetos é registrada por antenas e enviada para computadores, que preparam modelos 3D.



Fonte: Revista Galileu

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